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Notícias - 14 de setembro de 2020 - 09:55

Somos nós queimando

Somos nós queimando

Não esfria. Os animais ficam encurralados, desesperados. Estão pelo caminho, estáticos, em choque, sem reação, exaustos na busca por água, um refúgio no seu próprio refúgio, desfigurado. As patas queimam de tanto tentarem fugir do chão em brasas. Músculos, tendões e ossos expostos.

Por onde as chamas passam, o verde vira cinza e o pó preto indica o rastro do fogo, a destruição. A cada três passos, uma parada pra se recompor. É difícil respirar, arde, o coração chora e tenta dimensionar o que olhos alcançam: um Santuário travestido de inferno, e o demônio se chama negligência.

Desenhei em pensamento a dor no Pantanal, a partir de relatos de colegas jornalistas que estiverem lá nestes dias de novas tragédias ambientes. Está acontecendo agora. Ali, estamos queimando como nunca. A polícia investiga responsáveis pelos incêndios, já são cinco investigações abertas. Aquele imaginário verde, de fauna exuberante, agora, é mesmo uma ilusão. Não cabe nos livros, nem em cartões-postais. Não, não somos a nação que mais preserva.

A estiagem nesta época, somada ao descompromisso com o coletivo, coloca a região em risco todos os anos, e em cada um deles perde-se a chance de investir mais em sistemas de prevenção, de cuidado. Segundo o Ibama, mais de 90% dos incêndios no Pantanal são provocados. No maior refúgio de vida silvestre das Américas, não há brigadistas fixos. Inexiste um plano pra nossa preservação. Somos nós queimando ali.

“Nada na vida me preparou, nestes 21 anos aqui, para o que eu estou vivendo nesses incêndios. Sensação térmica de quase 50 graus, umidade relativa do ar em 10%. Enquanto caminhamos, o calor se aproxima e você precisa sair correndo. As equipes de voluntários me mandam áudios chorando, dizem ser impossível acreditar em tamanha devastação”, disse-me Claudia Gaigher por telefone.

 Claudia também tem chorado todos os dias. A repórter da TV Globo é uma capixaba pantaneira. O plano era ficar na capital Campo Grande por 3 anos, mas ela nunca mais saiu de lá. Apaixonou-se pelo Pantanal, onde grava ao menos uma vez por mês.

Conhecer um paraíso na sua versão mais dramática foi a missão recente do jornalista Leandro Barbosa. No Pantanal, só havia pisado na imaginação. Foram dias andando por uma terra arrasada, que já tem o tamanho das cidades de Rio e São Paulo multiplicado por dez. Esse é o tamanho: mais de 2 milhões de hectares dizimados.

“É difícil ver, e ainda não saber o quanto de destruição, de fato, aconteceu. Quantos bichos morreram? Fico imaginando o que se perdeu de verdade. Agora os pequenos detalhes chamam minha atenção, e que não tinham muito significado até eu chegar lá. Os insetos são tão importantes quanto as onças pra que esse bioma funcione de acordo com a natureza dele. Precisamos ter a sensibilidade do que a gente está perdendo”, desabafou numa mensagem de áudio emocionada. Era a primeira vez que o jornalista paulista refletia sobre a experiência recente, provocado por meu convite.

Amanaci é uma deusa indígena brasileira, cultuada como a “mãe das chuvas”. Foi o nome de batismo escolhido pela equipe responsável pela recuperação de uma onça-pintada que voltou a andar essa semana, depois de um tratamento com células-tronco.

As garras estavam em carne viva quando foi encontrada por bombeiros na região de Poconé, no estado de Mato Grosso. Era agosto, e as labaredas de fogo ainda se aproximavam do parque com a maior concentração dessa espécie no mundo.

Contra o negacionismo, a tentativa de manipular informações e realidades que queimam, resistimos com exemplos de mobilização. Nesta cobertura, tenho conhecido brasileiros que, neste momento, arriscam suas vidas para cuidar do Pantanal, durante sua maior tragédia: mais de 15% do bioma se foi, em sofrimento. Estamos queimando.

Os cuidadores da Amanaci escreveram nas redes sociais sobre o privilégio de testemunhar a força dela, a coragem e vontade de viver. Claudia Gaigher faz sua parte alertando o mundo sobre a deficiência no combate, a falta de estrutura.

Inspirado pelos combatentes que conheceu, dando suas vidas pela pelo Pantanal, Leandro Barbosa quer ecoar o amor registrado naquela mata forte. Entende como a única saída.

Um santuário não pode ser um lugar difícil de estar. Somos nós queimando.

Precisamos de água e respeito.

Por Aline Midlej – G1.COM